sábado, 25 de julho de 2009

Michel Foucault: Filosofia, Panóptico e Comunicação

«Cada um dos meus livros é uma parte da minha própria história. Por uma ou outra razão, tive ocasião de viver e sentir essas coisas». (Michel Foucault, 1982)
«Sempre quis que cada um dos meus livros fosse, em certo sentido, fragmentos de autobiografia. Os meus livros sempre foram os meus problemas pessoais com a loucura, a prisão, a sexualidade». (Michel Foucault, 1961)
«Não é absolutamente uma transposição para o saber de experiências pessoais. /A relação com a experiência deve, no livro, permitir uma transformação que não seja simplesmente a minha como sujeito que escreve, mas que possa efectivamente ter um certo valor para os outros». (Michel Foucault, 1972)
No seu livro O Rapto de Ganímedes, Dominique Fernandez descreveu a época - Paris em 1950 - em que os homossexuais tinham de viver na vergonha e na clandestinidade: "O retrato que podia traçar de mim - escreve Fernandez - era o de um ser destinado ao sofrimento". Os homossexuais, tais como Foucault e Fernandez, eram vítimas dessa violência repressiva e as suas perturbações psiquiátricas derivavam, em grande medida, das dificuldades para viver abertamente as suas homossexualidades. Os homossexuais eram forçados a realizar um trabalho sobre si para resistir à omnipresença da opressão quotidiana e à capilaridade das tecnologias do poder disciplinar. Michel Foucault realizou esta prática de si recorrendo à mediação do trabalho histórico: sondou o passado da civilização ocidental para questionar a evidência dos critérios mediante os quais o poder disciplinar produziu formas de exclusão sobre as quais repousa a nossa sociedade. A repressão da homossexualidade é interiorizada e aceite pela maior parte das suas vítimas: os homossexuais que interiorizam o opressor são impedidos de viver saudavelmente a sua homossexualidade. Porém, nem todos os homossexuais consentem ser colonizados pelo poder disciplinar e pelos seus critérios de normalidade: revoltam-se, lutam e operam um desvio que lhes permite escapar a essa repressão heterosexista. A ligação entre a experiência pessoal de Foucault e a sua experiência teórica inscreve-se nessa recusa dos poderes da normalização: Foucault superou a repressão que o impedia de viver a sua homossexualidade fazendo "o diagnóstico daquilo que nós somos hoje". O poder da normalização cria internamente o seu próprio contra-poder: as suas vítimas desenvolvem uma atitude crítica e rebelde diante das instituições estabelecidas que provocam mal-estar. A experiência de mal-estar leva as vítimas a estudar as instituições e o que as fundamenta. Ora, se têm uma história, as instituições são produtos da acção histórica que podem ser transformadas por meio de novas acções políticas. A acção política exige um trabalho teórico que pressupõe uma crítica radical das formas de pensamento que suportam subterraneamente as instituições. A exclusão social gera inteligência crítica: os homossexuais impedidos de viver as suas homossexualidades pelas instituições disciplinares anseiam pela sua transformação radical. Dotados de uma inteligência desenvolvida e fortalecida na resistência contra os opressores institucionais, os homossexuais sabem que para mover as coisas é preciso mover o pensamento, o seu próprio pensamento e o pensamento sedimentado nas instituições opressoras. A transformação de uma instituição requer a decifração do sistema de pensamento que presidiu ao seu nascimento. Foucault reservou a expressão análise arqueológica e genealógica para designar o trabalho teórico de decifrar os sistemas de pensamento que fundamentam as instituições.
A partir do momento em que inicia essa tarefa de decifração do saber investido nas instituições, Michel Foucault começa a produzir resultados teóricos nos quais todos os homens se podem reconhecer: o trabalho sobre si assume a forma de filosofia, cuja tarefa é "fazer o diagnóstico daquilo que nós somos hoje". Os seus livros são fragmentos de autobiografia no sentido de serem esforços para pensar a actualidade e a história presente. A filosofia de Foucault fornece o método de investigação que nos permite reconstruir o passado de cada uma das instituições em particular, mas não fornece padrões gerais que possam ser aplicados de modo universal. Definido como "ontologia histórica de nós mesmos", o trabalho crítico deve afastar-se de todos os projectos que pretendam ser globais e radicais: o "intelectual específico", tal como é encarnado por Foucault, opõe-se ao "intelectual universal" protagonizado por Sartre. Ao contrário de Sartre ou mesmo de Althusser, Foucault não propõe uma filosofia política, isto é, uma teoria do Estado. Em vez de pensar a política como um sistema geral e de elaborar o programa de uma outra sociedade, Foucault intervém teórica e politicamente em casos pontuais e particulares, fazendo primeiramente o seu estudo. O princípio gerador dos seus estudos não reside no próprio conteúdo dos trabalhos teóricos, mas sim na sua relação de mal-estar e de rebeldia diante das instituições. A atitude crítica resulta desse mal-estar: "a crítica é o movimento pelo qual o sujeito concede a si próprio o direito de interrogar a verdade sobre os seus efeitos de poder, e o poder sobre os seus discursos acerca da verdade". Se a governamentalização é o movimento pelo qual se procura, na própria realidade de uma prática social, submeter os indivíduos através de mecanismos de poder supostamente fundados na verdade, então a crítica é "a arte da não-servidão voluntária, da indocilidade reflectida". O enraizamento biográfico desta ideia de não-servidão voluntária deve-se ao facto de Foucault recusar submeter-se e sujeitar-se aos poderes da normalidade e da normalização sexual. O pensamento como actividade crítica resulta desta não-submissão ao mundo tal como é.
O pensamento de Foucault (1926-1984) sofreu uma alteração significativa no seu percurso: a passagem de uma arqueologia do saber para uma genealogia do poder. Analisaremos uma das obras mais significativa de cada um desses períodos: As Palavras e as Coisas (1966) e Vigiar e Punir (1975).
A ARQUEOLOGIA DO SABER. Na primeira obra - As Palavras e as Coisas, Foucault propõe uma arqueologia das ciências humanas: uma história que não é a de uma perfeição crescente dos conhecimentos, do seu progresso em direcção da objectividade, mas antes a das suas condições de possibilidade, a das configurações que deram lugar ao seu aparecimento. Foucault explicita os sucessivos e vincados epistemes que definem os sistemas de pensamento na formação da cultura ocidental, desde o fim do século XVI até o início do século XIX, o mesmo período que já tinha estudado na História da Loucura na Idade Clássica (1961). O período estudado não ilustra um progresso contínuo da razão; pelo contrário, é marcado por duas rupturas subterrâneas que configuraram historicamente as nossas maneiras de pensar. A primeira ruptura ocorreu no fim do Renascimento e marca a emergência da Idade Clássica (século XVII): a actividade intelectual e artística é concebida no interior de uma problemática da representação, que Foucault ilustra com a linguística de Port-Royal e as Meninas de Velásquez. A segunda ruptura, localizada na articulação do século XVIII com o século XIX, rompe com problemática da representação, fazendo emergir um modo de pensamento centrado na noção de sujeito, aquilo a que chamamos a problemática da filosofia da consciência: a nova ideia que surge é a de que o homem é, ao mesmo tempo, o autor e o actor da sua própria história, o que implica a promoção da ciência histórica à posição de "mãe de todas as ciências humanas". Esta segunda ruptura inicia uma nova idade: a Modernidade que ainda é, de certo modo, a nossa.
Foucault destaca basicamente duas conclusões da sua pesquisa. A primeira conclusão é teórica: a evolução do pensamento efectua-se de modo descontínuo, como já sabiam Bachelard e Koyré. Cada época tem o seu próprio tipo de pensamento que está prisioneiro dos limites que lhe são atribuídos pela estrutura empiricamente determinada subjacente à cultura desse período: a episteme constitui essa estrutura, o alicerce discursivo comum a todas as formas do saber e dos seus discursos. A mudança de estruturas só pode ser operada por uma ruptura subterrânea, anónima e brutal na nossa maneira de pensar e de encarar o mundo: a ruptura transforma a episteme, deslocando os limites do pensável e abrindo o horizonte para uma outra forma de pensar. Na sua obra A Arqueologia do Saber (1969), Foucault demarca-se do estruturalismo, afirmando que o que lhe interessa não é o estudo das estruturas em si mesmas, mas sim a compreensão de como os nossos discursos são produzidos e limitados por um a priori histórico. Com este último conceito articulado com o de arquivo, Foucault rejeita completamente a noção romântica de autor. A segunda conclusão é prática e decorre dessa rejeição do humanismo teórico: «Uma coisa em todo o caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tem posto ao saber humano. Escolhendo um cronologia relativamente curta e um espaço geográfico restrito - a cultura europeia desde o século XVI -, pode-se estar certo de que o homem é uma invenção recente. /O homem é um invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique também o seu próximo fim». Foucault condena o humanismo teórico que surgiu no fim da Idade Clássica, bem como todas as filosofias dialécticas da história, incluindo o marxismo que, nas versões de Lukács, Bloch ou Sartre, advogava a crença no progresso gerado pela negatividade da acção humana. Toda essa estrutura antropologizante está condenada a desabar, abrindo caminho a novas figuras do saber e a novas formas de intervenção política: «Hoje em dia já não se pode pensar senão no vazio do homem desaparecido. Porque esse vazio não institui uma carência, não prescreve uma lacuna a preencher. Ele é, nem mais nem menos, o desdobramento de um espaço onde, enfim, se torna possível pensar de novo. /A todos os que pretendem ainda falar do homem, do seu reino ou da sua libertação, a todos os que formulam ainda questões sobre o que é o homem na sua essência, a todos os que querem partir dele para ter acesso à verdade, a todos aqueles, em contrapartida, que reconduzem todo o conhecimento às verdades do próprio homem, a todos os que não se propõem formalizar sem antropologizar, que não pretendem mitologizar sem desmistificar, que não querem pensar sem pensar logo que é o homem que pensa, a todas essas formas de reflexão canhestras e torcidas, não se pode senão opor um riso filosófico - quer dizer, em certa medida, silencioso».
A GENEALOGIA DO PODER. Em Vigiar e Punir, Foucault renova radicalmente a análise dos modos de exercício do poder. Foucault opõe aí duas formas de controle social: (1) a disciplina-bloqueio, feita de interditos, proibições, barreiras, hierarquias e compartimentações, quebras de comunicação; e (2) a disciplina-mecanismo, feita de técnicas de vigilância múltiplas e entrecruzadas, processos de controle flexíveis e funcionais, de dispositivos que exercem a sua vigilância através da interiorização pelo indivíduo da sua constante exposição ao olhar do controlo. A noção de governamentalidade opõe-se a uma ideia do Estado, enquanto «universal político», e a uma teoria construída sobre a «essência estatal», referida como modelo de Estado gravado na pedra. Refutando esta concepção de um aparelho de unidade e funcionalidade rigorosas, que dominou durante muito tempo o pensamento político da esquerda, Foucault propõe a identificação rigorosa da ordinariedade do Estado, levando a pensar as suas práticas de adaptação, de ofensiva, de recuo, as suas irregularidades e improvisações, para descobrir outras coerências, outras regularidades, enfim, as tácticas gerais da governamentalidade.
A concepção do poder como feudo dos macro-sujeitos — o Estado, as classes sociais, os partidos políticos, a ideologia dominante — é deslocada em favor de uma concepção relacional do poder. O poder não se detém nem se transfere como uma coisa. Como escreve Foucault: «Ele não se aplica, pura e simplesmente, como uma obrigação ou uma proibição aos que “o não têm”; investe-os, passa por eles e através deles, neles se apoia, tal como eles próprios, na sua luta contra ele, se apoiam por sua vez no domínio que ele exerce sobre eles». Marcuse deu um destaque exagerado à noção de repressão, como se o poder só tivesse essa função de reprimir e de agir por meio da censura, da exclusão, do impedimento e do recalcamento. Foucault rejeita essa noção de um grande super-ego, ou seja, deixa de descrever os efeitos do poder em termos negativos — tais como excluir, censurar, reprimir, disfarçar, recalcar ou ocultar: «Na realidade, o poder — afirma Foucault — produz real; produz domínios de objectos e rituais de verdade». Um poder que agisse de um modo negativo seria muito frágil, mas o poder que conhecemos é forte, porque produz efeitos positivos ao nível do desejo e ao nível do saber: o poder produz o saber, como mostra a constituição do saber sobre o corpo que se organizou através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. O poder sobre o corpo fundou um saber fisiológico do corpo. Enquanto Althusser falava de aparelhos repressivos e ideológicos de Estado e de um Estado abstracto, Foucault refere-se ao dipositivo e à governamentalidade. O termo dispositivo que remete para as ideias de organização e de rede designa um conjunto heterogéneo que engloba discursos, instituições, arquitecturas, decisões regulamentares, leis e medidas administrativas.
A teoria da esfera pública de Habermas não levou em conta a especificidade das novas formas de publicidade criadas pelos mass media, encarando-as à luz do modelo tradicional da publicidade. Ora, nas sociedades modernas, a publicidade separou-se da ideia de conversação dialógica em espaços partilhados, tais como salões, clubes e cafés, ligando-se cada vez mais ao tipo de visibilidade produzido e alcançado pelos mass media, especialmente pela televisão e pela Internet. Embora não tenha analisado a natureza dos mass media e o seu impacto nas sociedades modernas, Foucault elaborou uma tese diferente da de Habermas sobre a organização do poder nessas sociedades e a mudança verificada nas relações entre o poder e a visibilidade. As sociedades do mundo antigo e do ancien régime eram, segundo Foucault, sociedades do espectáculo: o exercício do poder estava ligado à manifestação pública da força e da superioridade do soberano. Neste regime de poder, poucos eram os indivíduos que se tornavam visíveis a uma multidão de indivíduos. Esta visibilidade de poucos indivíduos era usada como meio de exercer o poder da minoria sobre muitos indivíduos. Assim, por exemplo, a execução pública numa praça de mercado era um espectáculo no qual o poder do corpo do soberano se vingava, reafirmando a glória do rei através da destruição de um súbdito rebelde. Contudo, a partir do século XVI, esta manifestação espectacular de poder foi substituída por novas formas de disciplina e de controle que se infiltraram nas diversas esferas da vida social. O exército, a escola, a prisão, o hospital e outras instituições começaram a usar mecanismos mais subtis de poder, baseados no treinamento, na disciplina, na observação e no registo. A difusão destes novos mecanismos de poder fez surgir gradualmente um novo tipo de sociedade disciplinar, na qual a visibilidade de poucos diante de muitos foi substituída pela visibilidade de muitos diante de poucos e a manifestação espectacular do poder soberano cedeu lugar ao poder do olhar.
Para caracterizar esta nova relação entre o poder e a visibilidade, Foucault utiliza a imagem do panóptico. Em 1791, Jeremy Bentham publicou um modelo de penitenciária ideal, ao qual deu o nome de Panopticon (Ver fotografia). Bentham concebeu uma construção circular com uma torre de observação situada no centro. As paredes do edifício eram alinhadas em celas, cada uma das quais separada das outras por meio de outras paredes. As celas deviam ter duas janelas: uma para dentro e de frente para a torre de controle, e a outra para fora, de modo a permitir a entrada de luz exterior. Com esta estrutura arquitectónica singular, um único supervisor situado na torre central pode controlar e vigiar uma multiplicidade de reclusos. Cada recluso, confinado na sua cela, está permanentemente visível e todos os seus movimentos podem ser observados e monitorizados pelo supervisor invisível. Além disso, como sabem que os seus movimentos são sempre visíveis, mesmo que não estejam a ser observados em todos os momentos, os reclusos comportam-se sempre como se estivessem a ser observados permanentemente. Deste modo, os reclusos são submetidos e sujeitados a um estado de visibilidade permanente que garante o funcionamento automático do poder. Para Foucault, o panóptico não é somente uma peça da arquitectura do século XVIII, mas fundamentalmente o modelo geral da organização das relações assimétricas de poder nas sociedades modernas. O panoptismo fornece uma alternativa efectiva às formas antigas de exercício de poder: os indivíduos foram gradualmente submetidos aos tipos de disciplina e de controle que eram utilizados nas prisões, ficando presos nos nós de um novo sistema e de uma nova tecnologia do poder, no qual a visibilidade constitui um meio de controle ou uma tecnologia disciplinar. Isto significa que os indivíduos já não são testemunhas oculares de um grandioso espectáculo que o poder exibe diante deles, mas são meros objectos de múltiplos e interligados olhares que, através do exercício diário de controle, dispensam a necessidade de espectáculo.
As teses de Foucault permitem identificar os dispositivos da comunicação-poder na sua própria forma organizacional. O modelo de organização em panóptico, utopia de uma sociedade disciplinar, serve nesta perspectiva para caracterizar o modo de controlo exercido pelo dispositivo televisivo: uma maneira de organizar o espaço, de controlar o tempo, de vigiar em permanência o indivíduo e de assegurar a produção positiva de comportamentos. Figura arquitectónica de um tipo de poder que Foucault foi buscar ao filósofo utilitarista Jeremy Bentham (1748-1832), o panóptico é essa máquina de vigilância em que, com visibilidade plena, se pode controlar de uma torre central todo o círculo do edifício dividido em alvéolos e onde os vigiados, alojados em células individuais e separadas umas das outras, são vistos sem verem os vigilantes. Adaptado às características da televisão, que inverte o sentido da visão permitindo aos vigiados verem sem serem vistos, e que deixa de funcionar exclusivamente por controlo disciplinar, mas funciona também por fascínio e selecção, o panóptico torna-se, para explicar a televisão enquanto «máquina de organização», no panóptico inverso, segundo a expressão de Étienne Allemand, utilizada na sua obra Poder e Televisão (1980). Allemand adaptou o panóptico às características da televisão, a qual inverte o sentido da visão, permitindo aos vigiados verem sem ser vistos. No entanto, a televisão deixa de funcionar exclusivamente por controle disciplinar, passando a funcionar também e sobretudo por fascínio e sedução. O panóptico inverso implica um novo tipo de organização social do poder: os mass media estabelecem uma relação entre o poder e a visibilidade diferente daquela que está implícita no panoptismo. Enquanto o modelo do panóptico possibilita que muitos indivíduos sejam observados por poucos, submetendo-os a um estado de visibilidade plena, o desenvolvimento da comunicação mediada fornece os meios pelos quais muitas pessoas podem recolher informações sobre os indivíduos que exercem o poder, submetendo-os a um certo tipo de visibilidade mediada. Esta nova forma de visibilidade mediada é muito diferente do espectáculo do ancien régime: a visibilidade de indivíduos e de acções está doravante separada da partilha de um lugar comum e, por conseguinte, dissociada das condições e das limitações da interacção face-a-face. (Ler este post - Michel Foucault: Filosofia e Homossexualidade.)
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 12 de julho de 2009

Morte e Sentido da Vida (3)

«A imortalidade da alma é uma coisa de tal modo importante para nós, toca-nos tão profundamente, que é preciso ter perdido todo o sentimento para ficarmos na indiferença de saber o que ela é. Todas as nossas acções e todos os nossos pensamentos devem seguir rumos tão diferentes, consoante haja ou não a esperar bens eternos, que é impossível dar um passo com sentido e juízo a não ser regulando-nos e tendo os olhos neste ponto, que deve ser o nosso último objectivo. Assim, o nosso primeiro interesse e o nosso primeiro dever consistem em nos esclarecermos a respeito deste assunto, do qual depende toda a nossa conduta». (Blaise Pascal)
5. A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre o sujeito da esperança. As pessoas deformadas pela visão anémica do mundo imposta pela ciência instrumental e pela tecnologia que servem os interesses da dominação, e pelo estilo de vida consumista que as reduz à sua mera condição de animal laboral, são actualmente pouco inclinadas a aceitar o pensamento da imortalidade da alma ou da ressurreição dos mortos. Para compreender o predomínio da ciência na mentalidade contemporânea, é necessário recuar até René Descartes e à ruptura radical que operou no pensamento. No início da era da técnica e da manufactura, Descartes separou e dividiu: de um lado, temos o pensamento, o que é próprio do homem, e, do outro lado, a realidade extensa, tudo aquilo que se manifesta no espaço. A suposição básica da ciência instrumental foi assente: a natureza existe por si e é o que pode ser medido e pesado, o jogo das forças, o acontecer material. O seu estudo exige método e não pode admitir que se projecte nela qualquer coisa que seja humana ou divina: a natureza está-aí para ser explorada, dominada, maltratada e devastada. Esta visão mecanicista alargou-se gradualmente a todas as regiões da natureza e do ser e conduziu ao triunfo do materialismo redutor e cadavérico: a ciência tenta explicar e dominar o mundo vivo através das leis da matéria morta e acaba por colonizar finalmente o espírito humano, entregando o ser humano ao jogo das forças cegas do acaso. O monismo vitalista foi substituído pelo monismo mecanicista e materialista: a vida não pode subtrair-se à lei básica e, por isso, é integrada com violência na lei geral do triste fisicalismo. Com a vitória da ontologia da morte universal, a explicação da vida significa negá-la, fazendo dela uma variante das possibilidades do sem-vida. A ciência foi sempre um projecto necrófilo: a redução da vida ao que não tem vida implica a dissolução do particular no geral, do composto no simples e da excepção aparente na regra confirmada. O pensamento científico e secularizado encontra-se, portanto, sob o predomínio ontológico da morte. Se no passado, a fronteira da compreensão era a morte, no nosso tempo, é a vida, porque só na morte deixa o corpo de ser um enigma: o organismo que vive, sente e procura é desmistificado como um ludibrium materiae. A suposta neutralidade da ciência e da técnica é pura ideologia: a razão política estabelecida e a razão técnica são uma só razão histórica que pode ser superada.
A morte coloca ao pensamento a pergunta sobre a possibilidade de realizar definitivamente o sentido da vida, a qual resulta do contraste existencial entre a grandeza e a santidade da vida e a ameaça da morte. A. Camus, para quem a vida era um absurdo, apercebeu-se deste dilema existencial quando se interrogou: Que liberdade pode haver no sentido pleno sem a garantia da eternidade? G. Marcel detectou a incompatibilidade entre a morte radical e o valor da vida pessoal: a morte radical anula o valor da vida e este escândalo faz com que a realidade humana se sinta ferida no seu próprio coração. A antropologia metafísica de J. Marías coloca duas questões radicais: Quem sou eu?, Que será de mim? Se respondermos à segunda questão com um rotundo "Nada", então anulamos a primeira questão: a morte total como aniquilação de mim e do meu mundo anula o sentido da vida e, nesse caso, não vale a pena viver. As antropologias materialistas encaram a morte como a última palavra da existência humana, alegando que a condição corpórea do homem conduz inevitavelmente ao aniquilamento da vida no momento da morte: a ruína do corpo fisiológico é o aniquilamento radical da vida pessoal. Esta negação da imortalidade da alma ou da pessoa humana é dogmática e o recurso à ciência não abona a seu favor, porque, como mostrou L. Tolstoi, "a ciência carece de sentido": a ciência instrumental "não tem resposta para as únicas questões que nos interessam, ou seja, o que devemos fazer e como devemos viver". A insuficiência do materialismo foi reconhecida pela própria filosofia marxista: "a imagem de felicidade é inseparável da de redenção" (Walter Benjamin). Isto significa que, à luz messiânica da redenção, a própria tarefa política da emancipação exige algum tipo de esperança numa vida eterna, isto é, numa vida não sujeita à caducidade do tempo. A fragilidade ontológica do ser finito que é o homem, o ser-para-a-morte (Heidegger), parece privá-lo da esperança, limitando-o à espera de um futuro melhor sobre a Terra. Condenado a ser esperança para os outros, o homem seria, ele próprio, nesta perspectiva, um ser sem esperança própria: as gerações passadas e intermediárias estariam irremediavelmente perdidas e sacrificadas no altar de um futuro que tarda a chegar. Objecto de esperança alheia, o homem singular não teria esperança própria. A perspectiva da redenção é mais exigente e, quando reclamada no seio de uma filosofia materialista, retoma a ideia cristã da ressurreição dos mortos (Adorno) e da natureza (Marx): o eu singular que conjuga o verbo esperar fá-lo, porque, apesar da sua mortalidade e da caducidade do mundo, espera o cumprimento da promessa veraz de vida eterna. Quando luta contra a dominação, a alienação, a reificação e as moradas da escravidão e do sofrimento gratuito, o materialismo consequente anula-se antes mesmo de se superar: a verdade do materialismo reside apenas na sua negação.
A imortalidade não é certamente um objecto de conhecimento, dado situar-se além de toda a refutação e de toda a prova, tal como a epistemologia do conhecimento científico as define, mas é seguramente uma ideia de conhecimento (Kant) tão antiga quanto a própria humanidade. Desde que o homem começou a sepultar os seus mortos, inicialmente numa posição fetal que nos reconduz à noção de sobrevivência e de um novo renascimento, a importância interior do sentido da imortalidade e a ressonância que provoca em nós constituem a única base que nos permite retomar a problema da imortalidade num tempo indigente como o nosso. As criaturas metabolicamente reduzidas procuram apenas uma das duas modalidades da imortalidade empírica: a imortalidade da fama, tal como foi clarificada por David Hume na filosofia moderna, em detrimento da imortalidade da acção. A noção de imortalidade da fama ou do nome é grega e foi muito admirada na Antiguidade Clássica ou mesmo na Idade Média. A imortalidade da fama era vista como uma justa recompensa pelos nobres feitos visíveis, isto é, públicos, realizados por homens corajosos, que, tal como Hume, eram motivados e movidos pela busca da fama. A visibilidade e a publicidade destes feitos imortais facilitavam a sua percepção e a sua lembrança por parte dos membros da comunidade. A sobrevivência na imortalidade da fama era alcançada unicamente na esfera da comunidade política: a fama imortal era a permanência das honras públicas. Como desejo de prolongamento na fama póstuma, o desejo de fama assenta na confiança depositada na opinião pública, nomeadamente na sua perspicácia no presente, na sua fidelidade no futuro e na sua própria continuidade e sobrevivência sem limites. Esta confiança grega na imortalidade da fama foi minada pela destruição benjaminiana da "história dos vencedores": a história narra os feitos dos vencedores, esquecendo e excluindo os feitos da maioria das pessoas, isto é, dos vencidos, cuja voz foi sempre-já silenciada. Não podemos acreditar na "selecção" realizada por uma tal historiografia das classes dominantes, sobretudo no contexto ofuscante da nossa própria sociedade, onde as reputações são fabricadas, a fama é inventada, a opinião pública é manipulada e a narração dos acontecimentos é falsificada sob pressão dos interesses instalados no poder. Nesta nossa era da corrupção universal da palavra, dominada pela disciplina partidária e pelas técnicas publicitárias, o discurso público é mais o discurso da mentira (a palavra aparente) do que da verdade, o que confirma a suspeita generalizada de que a fábula que relata à posteridade como as coisas aconteceram é uma mera invenção de um grupo minoritário corrupto constituído pelos grandes malfeitores da humanidade. A imortalidade da acção procura fazer justiça ao ser humano bom que, sem ansiar pela imortalidade do nome, própria do vaidoso, fica satisfeito com a continuação anónima da sua obra, traduzindo assim a esperança viva dos esforços sérios realizados ao serviço de um fim mais elevado.
Ora, estes dois conceitos de imortalidade empírica não resistem à extinção do tempo: o mortal não pode funcionar como meio de preservação da imortalidade. As sociedades e as culturas humanas são efémeras e passageiras e a própria sobrevivência da humanidade está em risco. A caducidade do mundo e das coisas humanas trabalham contra a imortalidade empírica e, quando a continuidade biológica da espécie humana está ameaçada de morte, torna-se problemático ligar o sentido da vida a um futuro que não é garantido: o êxito da aventura humana não está garantido e o fracasso é possível. Tanto o marxismo, pelo menos na sua versão mais ortodoxa e brutalmente materialista e economicista, como o existencialismo, lançaram-nos nas águas da mortalidade sem a segurança de um salva-vidas escondido, obrigando-nos a ocupar a nossa posição solitária no tempo entre dois nadas: o passado que já-não-é e o futuro que ainda-não-é. A questão da imortalidade foi varrida e banida do horizonte espiritual da nossa época: a descoberta da historicidade do homem (Hegel, Marx) e a elaboração ontológica da temporalidade do seu ser (Heidegger) levaram-nos a tomar consciência de que o tempo, longe de ser uma mera forma dos fenómenos, pertence à nossa essência mais íntima e que a nossa finitude é condição fundamental para que a nossa existência possa possuir autenticidade. O homem já não nega a sua mortalidade essencial; pelo contrário, parece reivindicar a sua condição efémera, breve e passageira, confrontando-se com o nada e convivendo com o nada.
O cepticismo moderno em relação à existência de Deus e à imortalidade da alma mina a própria realidade da superação pessoal da morte. A existência humana move-se unicamente na esfera histórica: nasce da história, desenvolve-se na história e descobre o seu sentido completo no âmbito da história. Para Hegel, a liberdade humana só se realiza como história: o homem é um ser livre na medida em que é um ser histórico e, como só há história onde há liberdade, a liberdade revolucionária negadora pressupõe a morte. Isto significa que somente um ser mortal pode ser verdadeiramente histórico. A morte constitui o fundamento último e o primeiro móbil da história: «A história é o movimento dialéctico da força que mantém no Ser o nada que é o homem. Esta força realiza-se e manifesta-se como acção negadora ou criadora: acção negadora do dado que é o próprio homem, ou acção da luta que cria o homem histórico; e acção negadora do dado que é o mundo natural onde vive o animal, ou acção do trabalho que cria o mundo cultural, fora do qual o homem é puro nada, e onde ele não difere do nada a não ser por certo tempo». Isto significa que o sentido da vida se encontra no futuro histórico, mesmo que esse futuro seja pensado como um fim da história. G. Mury defendeu, no seio do marxismo, esta tese de que o sentido da nossa existência se encontra no interior da história: "Posso dar um sentido à minha vida se a identifico com o projecto universal da espécie que, desde a sua origem, se empenhou em construir, graças ao trabalho social, um mundo fraternal em que o domínio do homem sobre o seu meio material possa ser radicalmente assegurado. Salvo-me ou condeno-me neste mundo, na medida em que cumpro ou deixo de cumprir a vocação da humanidade global encarnada nos combates presentes, levados a cabo pelo proletariado na sua luta pela libertação geral de todos os homens". A perspectiva de Mury assenta em três pressupostos questionáveis: a humanidade, como espécie biológica, continuará a existir indeterminadamente sobre a Terra (1); o advento de uma sociedade sem exploração do homem pelo homem e sem alienações parece estar assegurado (2); e esse advento constitui uma resposta total e exaustiva ao sentido da existência pessoal (3). Porém, nenhum destes pressupostos está garantido. A imortalidade da espécie não é certa, conforme o demonstra a problemática biológica da extinção das espécies. Por isso, torna-se problemático ligar o sentido da actividade presente a um futuro não garantido, e, mesmo que realizássemos esse sonho diurno de uma sociedade justa, a morte não deixaria de ser problemática, como mostrou Bloch ou mesmo Marcuse. A história como resposta à necessidade de sentido na vida humana pressupõe a mortalidade radical do homem, excluindo a priori a imortalidade da pessoa e negando a dimensão meta-histórica das aspirações humanas, como se o sentido imanente fosse suficiente para garantir a grandeza da aventura humana. Mury rejeita cabalmente a hipótese de que o desaparecimento do homem possa privar retrospectivamente a aventura humana de sentido, mas, como vimos, Benjamin, Adorno, Horkheimer e Bloch acabaram por abrir o marxismo à transcendência.
Com esta abertura à transcendência e ao inteiramente Outro, podemos dar expressão conceptual ao sentimento de que a temporalidade não pode ser a última palavra. No ser humano, manifesta-se a qualidade íntima de auto-superação, cujo sinal criptográfico reside na nossa ideia de eternidade. A prova tradicional da imortalidade afirma que a espiritualidade do homem não desaparece com a decomposição do organismo biológico, porque a alma espiritual do homem, não sendo composta como a matéria, não pode ser aniquilada por causa de um processo biológico. A morte separa o homem da comunicação sensível e tira-o do nosso mundo comum, mas esta invisibilidade da pessoa humana não implica, como mostrou Max Scheler, que o homem tenha deixado de existir pessoalmente: "O facto de não a vermos depois da morte significa muito pouco, dado que nunca a podemos ver de um ponto de vista sensível. O facto de não existirem fenómenos expressivos depois da morte é somente um motivo para aceitarmos que eu já não posso compreender a pessoa; mas não é motivo para aceitar a sua não existência. Por isso, a pessoa pode factualmente deixar de existir quando faltam elementos expressivos para a compreender. Não está escrito em parte alguma que as pessoas devam durar sempre; mas, na ausência destes fenómenos expressivos, não há nenhum motivo para afirmar que elas não sobrevivem" (Scheler). Retomando o argumento de Platão e de S. Tomás de Aquino, C. Tresmontant evita pensar a morte como aniquilação: a alma não é uma composição e, por isso, não pode decompor-se, tal como sucede com o corpo. O ónus da prova, o onus probandi, cabe àquele que nega a eternidade do espírito (Tresmontant) ou a sobrevivência da pessoa (Scheler).
«O facto fundamental da existência humana não é o indivíduo enquanto tal, nem a colectividade enquanto tal. Consideradas em si mesmas, ambas as coisas são abstracções formidáveis. O facto fundamental da existência humana é o homem com o homem. O encontro do homem consigo próprio só pode verificar-se e, ao mesmo tempo, realizar-se como encontro do indivíduo com os seus companheiros». (Martin Buber)
6. A pergunda sobre a morte é a pergunta sobre a pessoa humana. Martin Buber e Emmanuel Lévinas protagonizaram uma viragem na interpretação da existência humana, que, apesar de ser devedora da ontologia fundamental de Heidegger, rompe com a sua noção de "existência monológica": "o homem não pode fazer-se inteiramente homem mediante a sua relação consigo próprio, mas somente graças à sua relação com outro homem" (Buber). A existência monológica é substituída pela existência dialógica: o "estar-dois-em-recíproca-presença" realiza-se e reconhece-se unicamente no encontro do homem com o homem, do eu com outrem (tu) e o Outro (Deus). Inicialmente denominado personalismo (E. Mounier), o pensamento dialogal (M. Scheler, F. Ebner, M. Buber, A. Brunner) confere a primazia à relação com o outro e, no caso de Lévinas, confere superioridade ao tu em relação ao eu, revelada na epifania do rosto. Para Buber, o problema antropológico emerge nas épocas históricas de crise de confiança, quando o homem perde o seu clima familiar e a segurança que tinha desfrutado até esse momento de crise, e quando o mundo e a sua posição no mundo se tornam problemáticos. A crise de confiança leva-o, nesses momentos de perda e de insegurança, a colocar a pergunta sobre si mesmo, sobre o seu ser pessoal e sobre o sentido da vida. Buber destaca dois factores que contribuíram para a maturação do problema antropológico: a dissolução progressiva das velhas formas orgânicas da convivência humana directa (1) e a relação do homem com as novas coisas e circunstâncias que surgiram como resultado, directo ou indirecto, da sua própria acção (2). O primeiro factor contribuiu para o aumento da solidão humana: o homem perdeu o sentimento de estar hospedado no mundo e o sentimento da segurança cosmológica que lhe eram garantidos pelas anteriores formas orgânicas de sociabilidade. A perda de segurança sociológica, isto é, de um lar na vida e no mundo, desencadeou o sentimento de abandono total e de solidão. O segundo factor fez do homem um "resíduo" atrás das suas obras técnicas, económicas e políticas: o homem deixou de dominar o mundo que criou e, por isso, experiencia torpeza e fracasso de alma. Edmund Husserl enunciou três proposições que clarificam o problema antropológico, sem o ter tratado de modo directo e exaustivo: o maior fenómeno histórico é a humanidade que luta pela sua própria compreensão (1); o homem converte-se em problema filosófico quando se encontra em questão como ser racional (2); e o homem somente é homem nas entidades humanas vinculadas generativa e socialmente (3). Com excepção de Alfred Schutz, o trabalho antropológico da escola fenomenológica (Scheler, Heidegger) encarou estas conexões sociais como um obstáculo contra o qual as pessoas tropeçam para chegar ao seu próprio eu verdadeiro ou autêntico. Buber retoma a terceira proposição de Husserl para mostrar que a essência do homem não se encontra nos indivíduos isolados: a união da pessoa humana com a sua genealogia e com a sua sociedade é fundamental para compreender a essência do homem.
Martin Buber. A antropologia filosófica de M. Buber destaca fundamentalmente a estrutura dialogal ou interpessoal do homem e, contra a redução radical do homem a uma única dimensão, a relação com as coisas (Ich-Es), afirma a outra dimensão, a relação do homem com o outro homem (Ich-Du). Estas duas relações são caracterizadas, respectivamente, como experiência (Erfahrung) ou saber e encontro (Begegnung) ou diálogo. A relação do eu com o tu constitui a relação por excelência, o primum cognitum de toda a antropologia filosófica. A filosofia de Buber mais não faz do que clarificar estas duas dimensões relacionais do homem. A relação com o mundo material desenvolve-se como uma relação senhor/escravo e é dominada pela prática e pela vontade de dominar o mundo que a orienta. Dado ser passiva, a matéria não é conhecida em si mesma e, por isso, não entra directamente na experiência: a experiência não é a realidade que medeia entre o homem e a coisa, mas a realidade que se encontra no homem, do qual provém todo o sentido. O ser do mundo tem de se submeter aos significados que lhe são atribuídos pelo homem.
A relação com o tu é anterior à relação com o mundo e desenrola-se de modo completamente independente. Cada eu tem uma relação com o outro (o tu) e esta relação caracteriza-se pela imediatez: o outro está imediatamente presente, sem qualquer mediação conceptual ou outra. O tu é completamente diferente da coisa: está subtraído ao modelo senhor/escravo, ou seja, não está submetido ou dependente do eu. Buber exclui o domínio do eu sobre o tu e do tu sobre o eu: o encontro do eu e do tu não é, como sucede em Sartre, conflitual, na medida em que os dois pólos equivalentes da relação se constituem reciprocamente um ao outro. No encontro com o outro, o homem torna-se autenticamente eu e o outro, autenticamente tu. O espaço ou o horizonte da relação entre pessoas não é o mundo, mas o espaço interpessoal (o zwischen). Contra o idealismo, Buber elege, em vez da subjectividade, o encontro das pessoas, o intersubjectivo que se constitui na relação eu e tu, como o verdadeiro ser, e esta relação interpessoal está ligada a Deus criador que doa ao homem o ser. Isto significa que o encontro com o tu é também o caminho para Deus e que a relação interpessoal abre-se, integrando-a, a relação com o Tu absoluto. O tu é um mistério inefável que não pode ser submetido à experiência científica. Não sendo objecto, não está disponível e não pode ser conhecido plenamente: impõe-se como mistério inefável e reflecte no seu ser o parentesco com Deus. Na distinção entre os dois tipos de relação, Buber coloca o humano inteiramente na relação do eu com o tu, sendo impedido de ver que a relação com as coisas pertence à dimensão interpessoal.
Emmanuel Lévinas. A antropologia filosófica de Lévinas pode ser lida como uma crítica radical da egologia baseada no cogito de Descartes, contra a qual afirma a primazia do outro como verdade fundamental do homem e como o lugar das suas dimensões metafísicas e religiosas: "a metafísica é ética". A interpretação do homem fundada no cogito e na orientação para o mundo material está marcada pela "vontade de poder" e viciada pelo mito da totalidade. A antropologia egológica pode ser caracterizada a partir de quatro níveis. Ao nível do conhecimento, procura reduzir toda a realidade à razão explicativa: a realidade é constituída pela razão e conhecê-la significa reduzir todas as coisas à unidade do sistema racional pensado pelo ego, de modo a eliminar toda a alteridade e a expandir o domínio do eu sobre a totalidade da realidade. Ao nível ético, predomina a ideia de afirmação de si mesmo: o eu realiza-se a si mesmo, afirma-se à custa dos outros, utiliza os outros como meios e, deste modo, converte-se em legislador de si mesmo, submetendo tudo ao tribunal da sua razão soberana. Ao nível social e político, a ideia de soberania do ego e a sua orientação para o mundo implica a ideia de imperialismo: a razão soberana do ego engendra a guerra que visa alargar e globalizar o seu próprio poder económico, político e militar sobre os outros, eliminando-os e sujeitando-os aos seus próprios objectivos. Ao nível metafísico e religioso, ignora o verdadeiro encontro com o outro e fecha-se na história, não deixando espaço para a transcendência e atrofiando a dimensão metafísica: a concepção imanentista conduz ao ateísmo. Em todos estes níveis, a egologia coloca no centro a totalidade e, deste modo, sacrifica os indivíduos, submetendo-os ao sistema do ego auto-suficiente que privilegia a sua relação com o mundo na realização de si mesmo.
A antropologia interpessoal de Lévinas é uma antropologia da alteridade: a primazia que concede ao outro implica a certeza do outro como outro que se impõe com a sua própria força, introduzindo o homem numa experiência metafísica e religiosa (1), e o reconhecimento do outro, não somente ao nível da intimidade e da privacidade, mas fundamentalmente ao nível ético e objectivo (2): o outro deve ser reconhecido no mundo pelo facto de ser constitutivamente um ser indigente e necessitado. O outro revela-se na epifania do rosto e a sua presença é totalmente distinta da existência das coisas objectivas, no sentido de irromper por si mesmo na minha existência, sem que tenha sido constituído previamente pela minha razão e, portanto, inserido na totalidade racional. A epifania do rosto é a presença imediata do outro como absolutamente outro, que, impondo-se por si mesmo, rompe a tentativa de o reduzir a uma forma de totalidade. O reconhecimento do outro implica o reconhecimento concreto do outro no mundo, na medida em que a nudez do seu rosto é a presença do ser indigente e necessitado neste mundo. A nudez do rosto é toda a humanidade e simboliza a condição humana: todos os seres humanos desejam "ser alguém" frente aos outros e ser tratados como tais. A sua presença afecta a existência e eleva as relações interpessoais acima da esfera íntima e privada. O reconhecimento do outro no mundo é reconhecimento objectivo, não só no sentido da justiça, mas também no sentido do amor e da bondade. Porém, o outro é aquele que me olha de cima e que exige e tem direito a exigir. A relação do eu com o outro revela uma assimetria fundamental: a superioridade do tu em relação ao eu. Além disso, a relação interpessoal é o lugar onde se manifesta o absolutamente outro, ou seja, Deus, porque a exigência do outro, a sua presença soberana, é algo transcendente e absoluto, que supera a sua vontade arbitrária. Encontrar-se cara a cara com o próximo é encontrar-se perante Deus, que exige ser reconhecido na exigência de reconhecimento objectivo do outro: "A dimensão divina abre-se a partir do rosto do outro" (Lévinas).
O rosto na sua expressão convoca, rompendo-o, no ser-aí humano preocupado com o seu ser-no-mundo, o eu responsável pelo outro: "A morte do outro homem diz-me respeito e questiona-me como se eu me tornasse, pela minha eventual indiferença, o cúmplice desta morte invisível ao outro que aí se expõe; e como se, antes de ser eu mesmo votado a ele, tivesse de responder por esta morte do outro e não deixar outrem só, na sua solidão mortal. É precisamente neste chamamento da minha responsabilidade pelo outro que me convoca, me suplica e me reclama, é neste questionamento que outrem é próximo" (Lévinas). Lévinas procura entender o sentido da morte, não a partir da morte própria ou da angústia da morte própria, mas a partir do "inter-humano" ou da socialidade, isto é, na proximidade do outro homem, cujo rosto apela à "minha responsabilidade pela morte de outrem". "O eu é, como dizia Pascal, detestável", no sentido de ser "a própria crise do ser do ente no humano" (Lévinas). Quando o eu é ser na primeira pessoa, afirmando o seu ser e tendo de responder unicamente pelo seu direito de ser, o seu ser-no-mundo ou o seu "lugar ao sol" mais não são do que usurpações dos lugares que pertencem aos outros. Estas usurpações reduzem os outros à condição de oprimidos, repelidos, excluídos, exilados, despojados, mortos, ou de reduzidos à fome, e expulsam-os para um "terceiro mundo": o eu usurpa toda a Terra e realiza-se como violência ou assassinato, ocupando o lugar dos outros. A actual crise financeira e económica revela a natureza dessa usurpação da Terra, mediante a qual os eus corruptos de colarinho-branco condenam a maioria dos seres humanos à miséria e à pobreza. O poder começa onde o conhecimento apreende o indivíduo que existe sozinho, não na sua singularidade, mas na sua generalidade: a rendição das coisas exteriores à liberdade humana significa, além da sua compreensão, a sua apropriação, porque "só na posse o eu conclui a identificação do diverso. Possuir é manter a realidade desse outro que se possui, mas suspendendo precisamente a sua independência. Numa civilização reflectida pela filosofia do Mesmo, a liberdade cumpre-se como riqueza. A razão que reduz o outro é uma apropriação e um poder" (Lévinas). A concepção do "morrer por um outro" de Lévinas rompe com a ontologia heideggeriana do Dasein, na medida em que este ainda conserva a "estrutura do Eu". Para Heidegger, a morte é "poder ser o mais próprio", o "mais autêntico", e dissolução de todas as relações com outrem: "A possibilidade de se aniquilar é precisamente constitutiva do Dasein, e mantém assim a sua ipseidade. Esse nada é uma morte, isto é, a minha morte, a minha possibilidade (da impossibilidade), o meu poder. Ninguém me pode substituir para morrer. O instante supremo da resolução é solitário e pessoal" (Lévinas). Nesta perspectiva da autenticidade (Adorno), o morrer por um outro surge como um mero sacrifício. Ora, a relação com outrem, na qual a morte do outro preocupa o ser-aí humano, sem reconduzir à sua morte própria, indica "um além" (ou "um antes") da ontologia, e revela, ao mesmo tempo, "uma responsabilidade pelo outro": "A prioridade do outro sobre o eu, pela qual o ser-aí humano é eleito e único, é precisamente a sua resposta à nudez do rosto e à sua mortalidade" (Lévinas). A morte é, para cada um de nós, "o impossível abandono de outrem à sua solidão" e a "proibição desse abandono dirigido a mim". O temor pela morte do outro é o meu temor, mas um temor que não retorna à angústia pela minha morte: morrer por outrem e a morte do outro têm prioridade sobre a morte autêntica. (Fim da série`"Morte e Sentido da Vida". Publicdo em CyberCultura e Democracia Online: aqui e aqui. )
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Morte e Sentido da Vida (2)

«Os assassinados são defraudados até mesmo da única coisa que a nossa impotência pode garantir-lhes: a recordação». (Theodor W. Adorno)
«O dom de atiçar através do passado a chama da esperança pertence apenas ao historiógrafo perfeitamente convencido que diante do inimigo, e no caso deste vencer, nem sequer os mortos estarão em segurança. E este inimigo não tem cessado de vencer». (Walter Benjamin)
«Os verdadeiros indivíduos do nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação na sua resistência à conquista e à opressão, e não as personalidades bombásticas da cultura popular, os dignatários convencionais. Esses heróis não celebrados expuseram conscientemente a sua existência como indivíduos à aniquilação terrorista que outros arrostam inconscientemente através dos processos sociais. Os mártires anónimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram numa linguagem que será ouvida, mesmo que as suas vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania». (Max Horkheimer)
3. A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre os imperativos éticos da justiça, da liberdade e da dignidade. A experiência do Holocausto e das mortes nos campos de concentração nazis marcou fortemente o marxismo ocidental e a filosofia: a questão do sentido da vida foi desacreditada pelo horror brutal da morte planeada. Bruno Bettelheim descreveu a experiência dos prisioneiros nos campos de concentração de Dachau e de Buchenwald não só em termos de confinamento, mas também e sobretudo em termos de extrema ruptura das formas habituais da vida quotidiana, causada pelas condições brutalizadas de existência, pela ameaça sempre presente ou pela realidade da violência dos guardas prisionais, e pela escassez de alimentos e de outras provisões alimentares para a manutenção da vida. A experiência totalitária dos campos de concentração mostrou como "a psique humana pode ser destruída mesmo sem a destruição física do homem" (Arendt): arrancados brutalmente aos contextos práticos da sua vida quotidiana e à vida familiar, quando ingressavam nos campos de aniquilação, os prisioneiros procuravam de início distanciar-se psicologicamente das pavorosas pressões de uma vida em espaço confinado, tentando conservar os modos de comportamento normais, mas, sob pressão da Gestapo e da violência dos guardas prisionais, acabavam por perder a sua autonomia, adoptando comportamentos infantis, deixando de cuidar da sua própria higiene pessoal e perdendo o sentido de futuro, o senso do tempo e a capacidade de antever. Vivendo numa situação de insegurança ontológica radical, muitos prisioneiros tornaram-se cadáveres ambulantes (Muselmänner), rendendo-se fatalmente a tudo o que o futuro pudesse reservar-lhes. Porém, como mostrou H. Arendt, esta fabricação em série de cadáveres foi precedida pela preparação, histórica e politicamente inteligível, de cadáveres vivos: antes de roubar a própria morte aos prisioneiros, o domínio total começou por matar a sua pessoa jurídica (morte jurídica), depois a sua pessoa moral (morte moral) e, finalmente, a sua identidade única de pessoa humana (morte psicológica). Este planeamento gradual da morte mostra que o totalitarismo dispensa os homens, tornando-os seres supérfluos e transformando-os em animais. De facto, a natureza humana só pode ser verdadeiramente humana se for dada ao homem a possibilidade de tornar-se algo não-natural, o homem humanizado, de resto uma possibilidade que lhe é negada pela actual sociedade administrada e hipercapitalista de consumo.
Na sua meditação sobre o sentido da vida, Adorno considera que, depois de Auschwitz, o materialismo só pode ser verdadeiramente materialista na sua ânsia pela ressurreição da carne, sem a qual não podemos continuar a viver e a escrever poesia depois da terrível experiência dos campos de concentração nazis: a presunção da cultura foi completamente liquidada pelo "fedor do cadáver". A teoria crítica (= marxismo) deve deixar a porta aberta à "esperança que se refere à ressurreição corporal" e, deste modo, à própria teologia, porque "o único modo que ainda resta à filosofia de se responsabilizar perante o desespero (é) tentar ver as coisas como aparecem (à luz messiânica) do ponto de vista da redenção". A ideia de ressurreição foi ligada ao projecto revolucionário por Garaudy: ser revolucionário significa crer que a vida tem sentido e um sentido para todos. Isto significa que a moralidade do projecto de mudança social qualitativa ou de mudança de paradigmas depende da sua universalidade: justiça, liberdade e dignidade para todos os seres humanos. Ora, esta universalidade pode ser questionada pelo facto evidente de que milhares de seres humanos morreram no passado sem terem tido uma vida e uma morte dignas e dotadas de sentido. O marxismo é forçado a crer numa realidade inteiramente nova que contenha todos os seres humanos e que os prolongue: abriga, portanto, a esperança de que todos vivam e ressuscitem nessa nova realidade e a sua acção está fundada na fé da ressurreição dos mortos. As éticas dialógicas de Karl-Otto Apel e de Jürgen Habermas não se conformam com esta abertura ao "inteiramente Outro" (Horkheimer), mas a ideia de uma sociedade comunicativa que as alimenta permanece incompleta se não incluir a solidariedade para com os mortos. Não podemos projectar o futuro de uma humanidade emancipada sem redimir o passado de uma humanidade escravizada. Segundo Adorno, além da revogação do sofrimento presente, é preciso aguardar que o sofrimento não reparado do passado seja salvo. E, para que isso aconteça, é necessário que o pensamento crítico não capitule perante os poderes estabelecidos e se abra à transcendência; caso contrário, a memória do sofrimento, da injustiça e da alienação sofridas no passado impossibilita desfrutar uma vida justa e sem angústia.
Sem a luz da redenção plena, o homem entregue a si próprio perde-se, desespera e não sabe quem é. No nosso tempo indigente, o homem tornou-se para si próprio radical e universalmente um ser problemático (Scheler, Heidegger), o que justifica a clarificação filosófica dos aspectos fundamentais da sua essência ou natureza. A antropologia filosófica tem como tarefa dar uma resposta profunda e global à questão "O que significa ser Homem?" Para evitar o niilismo antropológico predominante, Walter Benjamin efectuou uma crítica da modernidade do ponto de vista da teoria da experiência: "Onde nos apercebemos de uma cadeia de acontecimentos, (o Anjo da História) vê uma única catástrofe que continua a amontoar destroços sobre destroços e os arremessa para diante dos seus pés". A tempestade responsável por esta catástrofe é o "progresso". Se for abandonado a si mesmo, o curso imanente da História nunca produzirá a redenção. O filósofo marxista deve "destruir o contínuo da História", de modo a activar e actualizar os seus potenciais redentores ocultos, que Benjamin associa ao "tempo de agora" (Jetztzeit). Segundo Engels, "a História é talvez a mais cruel de todas as deusas; ela conduz o seu carro triunfal sobre montes de cadáveres, não só na guerra mas também nos períodos de desenvolvimento económico pacífico". Para Benjamin, a consciência instalada no movimento das coisas, dos indivíduos e das ideias dominantes, contribui para que esse movimento prossiga a sua marcha triunfal nesse contínuo homogéneo que é a História dos vencedores. Escapar à tirania deste movimento que promove a "eterna repetição do mesmo" (Auguste Blanqui) e que consagra o "sempre igual" constitui a tarefa fundamental da concepção dialéctica da História, que deve operar uma "actualização" do passado e arrancar a tradição ao conformismo que procura dominá-la. Declínio (Verfall) e Salvação (Erlösung) constituem conceitos nucleares da filosofia messiânica da História de Benjamin, mas é preciso olhar a sua dialéctica intrínseca nestes termos: a modernidade destruiu a experiência e, portanto, a tradição, e compete à filosofia marxista operar a recuperação dialéctica da história cultural até alcançar o ponto em que "todo o passado tenha sido trazido para o presente numa apocatástase" (Orígines), isto é, numa recuperação messiânica de tudo e de todos, a restituição integral da História (Ernst Bloch).
Benjamin exerceu uma profunda influência sobre o pensamento de Adorno e, por intermédio deste último, sobre o pensamento tardio de Max Horkheimer. Todos aqueles que morreram injustamente reclamam justiça plena. As apologias póstumas e as ofertas de flores ou mesmo a mera recordação dos defuntos não são suficientes para fazer justiça aos mortos: a justiça plena exige a reabilitação dos mortos e a sua recuperação para a vida. A vitória sobre a morte é a vitória sobre a injustiça total: o carrasco não pode prevalecer sobre a vítima. Horkheimer rejeita o "marxismo soviético" que degenerou em ideologia e o iluminismo que se converteu num novo mito. Esta dupla-recusa constitui um regresso ao individualismo, no sentido de que somente os indivíduos livres podem formar uma sociedade livre. A filosofia tardia de Horkheimer encerra uma ideia teológica, podendo ser definida como uma teodiceia (M. Weber): um esforço teórico para explicar o sofrimento neste mundo relativo e contingente. A teologia não é, para Horkheimer, a "ciência de Deus" ou o "conhecimento de Deus", mas simplesmente a expressão da nostalgia própria do homem da justiça plena: "A teologia significa aqui a consciência de que o mundo é um fenómeno, de que não é a verdade absoluta nem a última. A teologia é a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não pode permanecer assim, que o injusto não pode ser visto como a última palavra". Ou, de forma mais enfática, a teologia é a "expressão de uma ânsia, de uma nostalgia de que o assassino não pode triunfar sobre a vítima inocente". Esta concepção de teologia como expressão de uma nostalgia de justiça plena e a sua articulação com a teoria crítica exigem alguns esclarecimentos teóricos.
3.1. A existência de Deus não pode ser comprovada ou desmentida. O conhecimento do desamparo e da finitude humana não constitui prova da existência de Deus: a sua função é produzir a esperança de que exista um absoluto positivo capaz de dar sentido à existência humana. Embora só seja possível mediante o pensamento de Deus, o conhecimento do desamparo não pode ser alcançado mediante o conhecimento do absoluto de Deus. O facto de não podermos afirmar ou negar a existência de Deus implica que a dialéctica do ateísmo/teísmo deve ser avaliada criticamente em função dos compromissos mundanos dos poderes religiosos com as estruturas sociais e as conjunturas políticas de cada época histórica: o marxismo não é, teoricamente falando, um ateísmo (Althusser). Além disso, não faz sentido falar de uma epistemologia da teologia, porque, como observou Althusser, a teologia é uma "ciência sem objecto", isto é, não é uma positividade: Deus não é objecto positivo de um discurso científico, mas a expressão sublime e o "objecto" da nostalgia humana de justiça plena, que não pode ser realizada na "história secular", em virtude da miséria passada e das deficiências da natureza não poderem ser evitadas.
3.2. Seguindo S. Tomás de Aquino ou mesmo as teologias dialécticas de Karl Barth e de Rudolf Bultmann, Horkheimer advoga uma teologia negativa: não podemos afirmar nada sobre Deus. O absoluto, o inteiramente Outro, não pode ser representado e, quando falamos dele, limitamo-nos a dizer que vivemos num mundo que é algo relativo e contingente. Deus é, para os judeus, o inominável, e, para os cristãos, o segredo incompreensível, isto é, não pode ser representado por imagens ou por palavras. Donde resulta que, para o judaísmo, não se trata de compreender como Deus é, mas sim de compreender como é o homem. A questão de Deus é fundamentalmente a questão do Homem (J. Alfaro, Bruno Forte, W. Pannenberg, J. Moltmann, G. Gutiérrez, D.A. Pallin): a teologia ajuda os homens a tomar consciência de que são seres limitados e finitos, condenados a sofrer e a morrer, mostrando-lhes que, para além do sofrimento e da morte, existe a ânsia de que a existência terrena não seja absoluta ou a única realidade. Esta é a função social da religião, o arquivo histórico onde estão depositados os desejos, os sonhos de um mundo melhor, os suspiros das criaturas oprimidas e as queixas das gerações passadas: o reconhecimento de um ser transcendente atiça o descontentamento com o destino terreno. O teísmo de Horkheimer é um teísmo do protesto contra a ordem existente, cuja lógica imanente conduz ao mundo burocratizado, administrado e organizado que, eliminando a individualidade e a vontade livre, o amor ao próximo e a solidariedade, o amor e a família, a religião e a filosofia, caminha na direcção de uma catástrofe. Sob a sua influência, Johannes B. Metz (teólogo) advogou a eliminação de uma sociedade injusta por meio da revolução, isto é, do salto qualitativo.
3.3. A teologia está por detrás de todo o actuar ou agir realmente humano: tudo o que tem relação com a moral funda-se, em definitivo, na teologia. Isto significa que toda a moral se funda na teologia, não no sentido de agirmos determinados pelo conhecimento de Deus, mas sim no sentido de agirmos baseados no "sentimento interior de que Deus existe". Esta é uma das fontes da moral; a outra é agirmos em relação aos outros de modo a fazê-los felizes e alegres, tornando assim a nossa própria vida mais bela. Num mundo burocratizado como o nosso, dominado por uma grande comercialização hipercapitalista e mergulhado numa crise profunda, mas carente de sentido e extremamente aborrecido, "é impossível salvar um sentido absoluto sem Deus". Esta frase de Horkheimer que foi alvo das críticas de J. Habermas aponta os limites do existencialismo ateu de Sartre: a vida em si mesma carece de sentido e, por isso, compete ao homem dar-lhe sentido. A rejeição de Deus significa que cabe ao homem a tarefa de "inventar valores". Cabe a cada um de nós escolher o seu ideal e a sua moral: a liberdade é o único fundamento dos valores e absolutamente nada justifica a adopção deste ou daquele valor, desta ou daquela escala de valores. A liberdade é o fundamento sem fundamento dos valores. Condenado a agir livremente, o homem é responsável pelas suas escolhas sinceras. As opções de cada homem não são puramente individuais, porque escolher para nós é escolher para todos os outros. Ao fazer uma escolha, o homem proclama o valor universal do alvo que visa. G. Lukács criticou severamente o existencialismo de Sartre, sublinhando o paradoxo que o domina: rejeita a existência de valores e de normas absolutas, ao mesmo tempo que reivindica o alcance universal da escolha individual. Não admira que Sartre tenha visto o homem como uma paixão inútil e que, em reacção a este ateísmo radical, V. Gardavsky tenha colocado a questão: O que pode oferecer um homem sem Deus?.
3.4. A teologia negativa de Horkheimer é uma teologia da proximidade, elaborada a partir da concepção desenvolvida por Paul Tillich (teólogo) de que na ideia de sociedade justa está recolhida e superada a ideia cristã de amor ao próximo, o respeito pelos direitos de cada ser humano. Dado a situação do proletariado ter melhorado sem a revolução e o seu interesse comum já não se encontrar na mudança radical da sociedade hipercapitalista, mas apenas numa melhor configuração material do nível de vida, a noção de solidariedade deve ser usada para designar não a solidariedade de uma determinada classe social, mas sim a solidariedade humana resultante do facto dos homens sofrerem e serem seres finitos. Como membros da humanidade em que nos perpetuamos, estamos interessados pelo destino dos demais seres humanos e, quando pensamos em nós, fazemo-lo como membros dessa humanidade. Vivemos e lutamos para que os outros possam existir. Acompanhando Schopenhauer, Horkheimer considera que a doutrina do pecado original constitui a doutrina mais grandiosa elaborada pelo judaísmo e pelo cristianismo: a afirmação de si mesmo, a negação dos demais indivíduos, constitui o pecado original propriamente dito. O indivíduo que age mal, negando com a sua vontade de viver a vontade dos outros e procurando a sua felicidade à custa da felicidade dos outros, volta a encarnar, segundo Schopenhauer, nalguma forma da sua vida anterior, suportando todos os sofrimentos até que, como mártir autêntico e real, se encontre próximo do sofrimento dos outros e sinta com eles compaixão e alegria. Ora, esta doutrina só é possível sob a condição de Deus ter criado o homem à sua imagem e semelhança, isto é, como um ser livre e o único responsável pelo seu destino histórico, para o bem e para o mal. A solidariedade no sofrimento e na morte é alimentada pela ânsia de que a injustiça não terá a última palavra. A ideia da morte define não só a certeza da dissolução do eu, mas também a preocupação pela sobrevivência num tempo imprevisível, como ser vivo, sobre a Terra. A referência à identidade do ser vivo enquanto tal possibilita, segundo Horkheimer, fundamentar a solidariedade com todas as criaturas vivas, sem recorrer ao conceito bizarro e infantil de libertação animal avançado por Peter Singer.
3.5. Ora, o nosso mundo burocratizado e administrado é uma das configurações sociais do pecado original: a actual crise financeira e económica indica uma das raízes do mal radical, a corrupção dos executivos de colarinho-branco que, nas últimas décadas, usaram o poder político para proveito pessoal, em detrimento dos bens e dos interesses universais da humanidade. A relação entre a teoria crítica e a teologia pode ser clarificada na sua conexão conjunta na recusa enfática do mundo administrado que ameaça destruir a humanidade e a natureza. A função social da Filosofia consiste "na crítica da ordem existente". A crítica filosófica não significa "uma mania superficial de criticar determinadas ideias" ou determinadas situações sociais, na suposição da filosofia deter um ponto de vista privilegiado sobre o mundo, ou na mera lamentação de uma circunstância isolada, para a qual o filósofo recomenda uma solução. Como crítica radical do mal existente, a Filosofia visa "impedir que os homens se percam naquelas ideias e formas de comportamento que a sociedade lhes inspira na sua organização racional actual", as quais os convertem em meros autómatos obedientes e submissos aos regulamentos racionais da organização burocrática: os homens precisam aprender a descobrir que o progresso e o seu aliado positivista põem em perigo não só a fé e o conhecimento crítico, incluindo a filosofia, mas também o desejo de um mundo melhor. A teoria crítica não abdica do seu esforço político para "transformar o mundo" (Marx), isto é, para ajudar na tarefa prática da construção de um mundo cada vez melhor e cada vez mais razoável, livre e justo, mas, permanecendo fiel ao espírito da filosofia moderna que, desde Descartes até Kant e Hegel, procurou reconciliar a filosofia, a ciência e a teologia, encerra "um pensamento que tende para o teológico", isto é, para o inteiramente Outro: a abolição ancestralmente desejada da crueldade sem sentido. A supressão da teologia e da religião levada a cabo pela organização burocrática do mundo implica o desaparecimento do mundo daquilo a que chamamos sentido. Diante desta ameaça de despojar o mundo do sentido, entregando-o à actividade sem sentido, a teoria crítica é obrigada a assumir uma dupla-tarefa: "designar o que deve ser mudado e conservar determinados momentos culturais", incentivando a renovação da teologia e da sua integração no ensino universitário, a defesa do amor, da família e do indivíduo, e a reforma radical do ensino. Ao descrever o processo de mudança social e tecnológica a que está submetido o mundo moderno, a teoria crítica exprime o Mal existente e, ao mesmo tempo, procura transformá-lo através de uma praxis iluminada. Marx evitou expor em termos positivos o reino da liberdade: a sua crítica da sociedade capitalista identificou-a com o Mal existente, mas não descreveu positivamente o Bem desejado pela humanidade solidária. Embora não possa descrever o Absoluto e representá-lo, a teoria crítica pode caracterizar aquilo que nos faz sofrer e que precisa ser transformado através de um esforço comunitário de solidariedade. Os homens que partilham a precariedade do mundo no sofrimento e na morte devem unir-se na luta política por um mundo melhor. A teologia recorda que na vontade de verdade habita o desejo ou a ânsia do inteiramente Outro e, com este testemunho da justiça plena, ajuda a transformar o mundo na direcção do socialismo democrático: "O individualismo kantiano contém em si a verdade do socialismo./ A unidade da liberdade e da justiça pertence ao miolo da filosofia kantiana" (Horkheimer).
«Um velho sábio lamentava-se dizendo ser mais fácil salvar o homem do que o alimentar. O socialismo futuro, quando todos os convidados estiverem sentados à mesa, quanto todos puderem sentar-se aí, deverá confrontar-se mais do que nunca, num combate particularmente difícil e paradoxal, com a inversão desta antiga sentença: é mais fácil alimentar o homem do que o salvar, isto é, reconciliá-lo consigo mesmo, com os outros, com a morte e com esse mistério absolutamente vermelho que é a existência do mundo. Com efeito, a alienação mais pertinaz não é unicamente a gerada por uma sociedade imperfeita, que desaparecerá com ela; há outra origem mais profunda da alienação. Marx dizia: "Ser radical é perceber as coisas pela raiz. Ora, para o homem, a raiz de todas as coisas é o próprio homem". A primeira epistola de João (3, 2) afirma, por sua vez, tomando esta raiz que é o homem não como a causa de qualquer coisa, mas como um destino: "Mas o que nós seremos ainda não se manifestou. Sabemos que, quando se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é. Todo aquele que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também ele é puro (Jesus)». (Ernst Bloch).
4. A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre a dialéctica presente/futuro. O mundo em que vivemos é um mundo pouco acolhedor, inóspito e dominado pela alienação. Por isso, sonhamos com um futuro que seja a "pátria da identidade" (E. Bloch). Entre o presente sofrido e corrupto e o futuro sonhado e liberto, intercala-se o hiato, a fenda do tempo, o abismo da morte. No tempo da vida quotidiana, o passado, o presente e o futuro sucedem-se com regularidade uns aos outros, permitindo a sua fixação pelo calendário: o presente é hoje, o passado começa ontem, e o futuro inicia-se amanhã. Rodeado pelo passado e pelo futuro, o presente funciona como o ponto fixo, a partir do qual nos orientamos, olhando para trás ou para diante. A atribuição de um continuum numérico ao fluxo da mudança perene deve-se à continuidade das nossas ocupações e das nossas actividades no mundo, isto é, à continuidade da nossa vida quotidiana. A espacialidade da nossa vida diária leva-nos a espacializar os tempos verbais: o passado está "atrás" e o futuro, "adiante". Porém, a inserção do homem com o seu tempo de vida limitado pelo nascimento (origem) e pela morte (fim) transforma o fluxo contínuo da corrente da mudança, repartindo-o nos três tempos verbais: a passado e o presente estão presentes na sensação interior do tempo e colidem um com o outro como o já-não e o ainda-não. Na parábola de Kafka, o "Ele", isto é, o homem, está situado entre o passado e o futuro em qualquer momento dado; o tempo intermediário é o presente, mais precisamente o Agora presente, onde as forças antagónicas colidem uma com a outra: a colisão do passado, que já não é, e do futuro, que está a aproximar-se e ainda não é. O homem vive sempre no intervalo entre o passado e o futuro: um Agora alargado no qual passa a sua vida, lutando contra o peso morto do passado que o empurra para a frente com a esperança, e o medo de um futuro (a morte inevitável) que o puxa para trás na direcção da "tranquilidade do passado" (Arendt) com a nostalgia e a recordação da única realidade de que pode estar certo. Tanto a situação cristã como a situação revolucionária podem ser compreendidas como o "autêntico entre" (R. Bultmann): o homem vive entre dois nadas, o do passado que já não é e o do futuro que ainda-não-é. O entre não é uma determinação puramente cronológica, mas o tempo de uma nova oportunidade para que o homem se comprometa e se esforce, em comunidade solidária, pela sua salvação futura.
A intenção de E. Bloch é elaborar uma filosofia em chave salvífica, de modo a fazer do marxismo uma "meta-religião", isto é, uma teoria e praxis da plenitude de ser e de sentido, na qual o homem é visto como um Deus em potência. A sua antropologia toma a forma de uma cristologia e o seu humanismo radical supera todos os outros humanismos na direcção de um antropoteísmo. Convencido de que "o melhor lado da religião é o futuro", Bloch realiza uma hermenêutica crítica da Bíblia, de modo a mostrar a existência de uma "Bíblia subterrânea": a verdadeira Bíblia pauperorum, a Bíblia dos pobres, cujo órgão principal reside no seu "eixo não-teocrático". A mensagem subterrânea da Bíblia dos pobres reside no homo absconditus e implica a abolição de todas as relações sociais onde o homem é um ser explorado, oprimido, deserdado, ofendido, humilhado, estranho a si próprio, desesperado e abandonado. A Bíblia é a religião da utopia humana e, para apreender esta visão herética, o ateísmo no cristianismo, é preciso desteocratizá-la: Deus mais não é do que a idealização hipostasiada do ser humano ainda-não-realizado na sua realidade essencial (Marx) ou, como diz Bloch, a "enteléquia utópica". O resultado da operação de desteocratização da Bíblia é o "transcender sem transcendência": a rebelião radical dos homens solidários contra a opressão e a corrupção conduzida pela esperança de um verdadeiro "ser-outro". Porém, a desteocratização da Bíblia aparece articulada com uma desdogmatização do marxismo. As distinções entre a "corrente fria" e a "corrente quente" do marxismo, entre utopia abstracta e utopia concreta, entre sistema acabado e sistema aberto, permitem a Bloch ultrapassar as fronteiras do pensamento racionalista tradicional que deprecia as formas de pensamento utópico e as rejeita como produtos imaginários de um irracionalismo avesso à triste visão científica do mundo, e, ao mesmo tempo, integrar a tradição positiva das utopias numa visão renovada da filosofia marxista. O conceito de "ortopedia do andar erecto" resume a tarefa de renovar o marxismo: a análise económica e política (corrente fria) deve estar ligada a uma filosofia escatológica da história (corrente quente), a única capaz de realizar uma síntese produtiva entre a teoria e a praxis de emancipação e de exprimir as aspirações profundas da humanidade oprimida. O marxismo enquanto "ciência dialéctica das tendências" deve permanecer aberto às suas heranças culturais e à percepção das potencialidades objectivas da realidade que apontam para o futuro.
A soteriologia de Bloch assenta numa ontologia da possibilidade objectiva, que pode ser esquematicamente reduzida a três enunciados básicos: a realidade é matéria (1), a matéria é possibilidade (2), e a possibilidade está em devir, isto é, em processo (3). A história do homem não é compreendida em termos de evolução, de aperfeiçoamento progressivo e homogéneo da actual situação social, através de mudanças graduais e quantitativas, mas é lida em termos de revolução, de ruptura da ordem estabelecida, que deve ceder o seu lugar a uma ordem inteiramente nova. A realidade é possibilidade processual capaz de se autotranscender para a novidade. A noção de possibilidade de autotranscendência permite a Bloch criticar a perspectiva positivista, segundo a qual a realidade é um facto bruto dado uma vez por todas: a realidade é processo em devir aberto a um futuro novo pela acção de uma potencialidade latente na sua própria urdidura e, portanto, imanente ao próprio processo. A totalidade do real orienta-se na direcção de uma consumação plenificadora: o Novum Ultimum. O processo termina quando alcança esse Novum e começa a existir o Ser numa forma inédita de duração abrigada e protegida de toda a caducidade e de qualquer acidente letal. A história do mundo mais não é do que o laboratorium possibilis salutis. O princípio de identidade (A = A) é substituído por um novo princípio que leva em conta o papel do factor tempo na realidade: "A = ainda não é A", "S = ainda não é P". Isto significa que o sujeito ainda não realizou todas as determinações do predicado: os oprimidos ainda não foram libertos, "os bárbaros calculadores de tudo" (Hölderlin) ainda não foram assassinados, o homem ainda é um estranho para si próprio, a ciência como ideologia ainda continua a "devastar tudo" (Hölderlin), as desigualdades sociais ainda não foram suprimidas, a corrupção ainda não foi eliminada, a democracia ainda não foi realizada, a natureza ainda não se converteu em pátria (casa do Homem), enfim, o verdadeiro ainda não é predicado da realidade efectiva. A génese autêntica do real não está no começo, mas sim no fim, quando formos "nós mesmos o sétimo dia da criação" (dies septimus nos ipsi erimus). Com base nestes pressupostos, Bloch ergue a esperança como princípio do real: a esperança não é aqui um "afecto de expectação", mas sim a determinação fundamental da totalidade da realidade objectiva: a esperança como docta spes é o conhecimento criticamente antecipador que se encontra mediado e combinado com o processo objectivo, no seu movimento dialéctico em direcção à realização plena do seu conteúdo-meta. A esperança não está garantida e, por isso, o desenlace do processo histórico permanece em suspenso até ao final, podendo ser ameaçado por factores anti-utópicos capazes de o conduzir ao Pessimum do Nihil, à negação do ser e do sentido. A esperança garantida é característica da hipótese de um providencialismo religioso que apela ao aval mítico da divindade ou do materialismo mecanicista e determinista, incompatível com a liberdade do homem, o único ser responsável pelo futuro do processo-em-devir. Bloch aposta no Optimum do Totum e não no Pessimum do Nihil: o processo histórico acederá ao Summum Bonum, à pátria da identidade, na qual, após a derrogação de todas as caducidades que segrega para se auto-alimentar e abolidas todas as contradições próprias da actual situação de alienação, o homem será Deus e a realidade produzirá fielmente o arquétipo bíblico da Nova Jerusalém.
A ontologia do ainda-não-ser é acompanhada por uma antropologia do homo absconditus que assume a forma de uma cristologia. Dado não ser um processo determinista ou mecanicista, o processo de génese da realidade precisa de um agente e esse agente é o próprio homem que, graças à sua criatividade livre, conduz a realidade para a meta. A dialéctica sujeito/objecto opera no mundo feito pelo homem: a matéria em processo precisa de um agente do processo, "uma subjectividade que trabalha" e que "se esforça por romper a objectivação e a objectividade", de modo a animar as contradições que surgem na história e a colocar a negatividade ao serviço do possível triunfo do fim último, e este agente está, ele próprio, em processo, porque é um ser que nasce de um parto prematuro: o homem não nasce como ser definitivamente terminado e concluído, tanto ontogeneticamente como filogeneticamente, e, por isso, precisa desenvolver-se e fazer-se a si próprio durante quase toda a sua vida. O destino do homo absconditus revela-se em Jesus do Novo Testamento. Quando se auto-intitula "Filho do Homem", Jesus remete ao Adam Kadman da cabala judaica, isto é, ao Filho do Homem Celestial em contraposição ao Adão-argila do relato javista da Criação. Na expressão "Filho do Homem", está depositado o sonho humano de alcançar no futuro a homoousia, a consubstancialidade homem-Deus. Deus fez-se Homem significa que o Homem se fará Deus: os tesouros que foram atribuídos ao Pai Celeste hipostasiado serão devolvidos ao humanum. Ao recusar a Jesus a homoiousia (a semelhança) com Deus, atribuindo-lhe a homoousia (a consubstancialidade), o cristianismo reclamou para o homem uma prerrogativa revolucionária ainda não sonhada, o cumprimento da promessa da serpente do Paraíso: "Sereis como deuses". O Deus absconditus só é válido enquanto indicação do homo absconditus. L. Feuerbach enganou-se quando disse que o homem é Deus, porque, nas actuais circunstâncias de alienação, o homem ainda não é Deus: o homem será no futuro Deus. A ressurreição, a ascensão e o retorno parúsico de Jesus indicam essa revelação do humano que terá lugar no final do processo histórico, quando o Filho do Homem, vencida definitivamente a anti-utopia por excelência que é a morte, se entronizar num mundo tornado finalmente "o céu na Terra" e manifestar assim a sua condição de único e genuíno Ser Supremo.
E. Bloch dedicou uma longa e profunda reflexão às imagens utópicas da esperança contra a morte, em especial as da imortalidade da alma, da metempsicose, da ressurreição dos corpos, da vida além-túmulo, enfim, da morte como viagem. Assim, por exemplo, o herói vermelho que lutou contra a injustiça e o fascismo sacrificou a sua vida sem a esperança de renascer. Em casos como este, a certeza da comunidade concreta de consciência de classe absorve a questão da sobrevivência individual e constitui um Novum contra a morte: a unidade do individual e do colectivo, isto é, a solidariedade, torna o homem corajoso face à morte. O sacrifício da vida do herói não foi "em vão": lutar contra a opressão e a corrupção é contribuir para a libertação do futuro. A luta por um mundo melhor constitui o início da tarefa de fazer conscientemente a história, rompendo com a pré-história marcada pelo pecado do egoísmo e pela corrupção dos opressores e dos ladrões de colarinho-branco. A filosofia da esperança de E. Bloch confronta-se com o problema da morte, cujas "mandíbulas pulverizam tudo". Bloch defende a perspectiva da "extraterritorialidade" do núcleo existencial frente à morte e à caducidade, expressando a utopia do non omnis confundar: a esperança firme de que o núcleo autêntico do humano ultrapasse a bruta facticidade da realidade na sua figura obscura presente e não se volatilize para sempre com a morte do seu sujeito, mantendo a confiança de que, no futuro, o Ser prevaleça sobre o Nada. Ou, nas palavras de Bloch: "Eu não soçobrarei inteiramente na confusão, isto é, a melhor parte do homem não desaparecerá. A melhor parte do homem, a sua essência definitivamente descoberta, é também o último e o melhor fruto da história". Na obscuridade do instante vivido, cada ser humano acede ao seu núcleo, que, além de ser algo muito próximo do nosso ser, constitui o fundamento fundador: o ser-existência é imediato e é o fundamento do devir, tanto da caducidade do mundo como do futuro. É este núcleo obscuro da existência que impulsiona o processo do devir para a frente e para diante e que supera todas as suas formas de existir. Sendo fundamento da caducidade, ele não pode estar sujeito à caducidade e à morte. Cronos devora os seus filhos, mas não pode devorar o seu filho autêntico, o definitivamente cumprido ou realizado, porque este ainda não iniciou o seu processo, ainda não é, e, por isso, não pode ser afectado pela morte. Possui em torno de si o "círculo protector do ainda-não-vivo": o núcleo existencial é "imortal", porque, como ainda não começou o seu processo de vir a ser, impulsiona o processo de devir. É extraterritorial em relação à caducidade e à morte, no sentido de ser remetido para um eschaton de realização plena. A morte encontra-se apenas no momento da cisão, no qual o ser ainda não se realizou a si mesmo. A meditação blochiana da morte baseia-se nos conceitos de imortalidade da alma e de transmigração das almas, não na sua forma platónica, mas na forma que assumiu nas filosofias de Lessing, Kant e Fichte: a distinção blochiana entre vida e morte como núcleo da existência e casca fenoménica (invólucro) retoma a distinção entre o Eu transcendental, que caminha infinitamente para si mesmo na reflexão, tornando-se imortal, e os fenómenos condenados à mortalidade, através da transformação do sujeito transcendental e da sua conversão num sujeito que se supera infinitamente a si mesmo na esperança. É neste sujeito da esperança que reside o "imortal da consciência revolucionária-solidária": "o imortal na pessoa enquanto é o imortal das suas melhores intenções e conteúdos". A "alma da futura humanidade" aparece antecipadamente na consciência revolucionária. O núcleo existencial conquista-se a si mesmo, negando a história e o seu abismo mortal e, ao mesmo tempo, projectando-se no ainda-não-existente. (CONTINUA com o título "Morte e Sentido da Vida 3". Publicado em CyberCultura e Democrcia Online: aqui e aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa